Bonita decoração … bonito defeito!

IMG_0569IMG_0566Quando fiz o sabão dominó, a primeira tentativa foi um fracasso só.  O súbito aumento da viscosidade depois do traço, no momento de verter no molde,  acabou por derrubar os canudos porque a massa não tinha fluidez, acumulou no centro, ganhou altura e depois espalhou arrastando os canudos.
Para nao perder a massa de sabão retirei os canudos e coloquei as duas partes (ia usar dois moldes) num molde só. Observei que houve a formação de um gel intenso e depois que desenformei 24 horas após, já dava para notar este desenho na parte superior do bloco e quando cortei vi que o bloco todo estava com este desenho diferente e bonito, que lembra o mámore travertino.

Observem que não é uma decoração, algo que foi planejado para dar este efeito, é um defeito, bonito, mas um defeito. Vamos então à explicação do que aconteceu, dentro de um entendimento razoável do fenômeno.
O traço foi acelerado por que usei uma mistura de óleos essenciais – limão siciliano, eucalipto estageriana e citronela, 3% (s/o)  em partes iguais e um deles, o limão siciliano,  potencializou essa aceleração do traço. Quando adicionei na massa e senti que havia uma interação, imediatamente parei de homogenizar, dividi a massa em duas partes e verti o volume menor no molde pequeno, mas já era tarde a viscosidade era inapropriada para fazer o petit poás, que acabou derrubando os canudos.

Como juntei tudo num molde só para não perder o sabão, a massa (4,3 kg) ocupou quase inteiramente o molde. Esta situação de molde (18 x 30 x 8 cm), e o volume ocupado pela massa é uma relação propícia para o desenvolvimento da fase gel com grande intensidade. O molde com MDF de 20 mm e com tampa, é um ótimo isolante térmico, pouco calor é perdido.

Na maioria das vezes eu obtenho gel parcial neste molde, mas desta vez o gel foi completo devido ao maior volume de massa. Você nota o gel parcial pela diferença de cor, mais escura no centro e mais clara nas bordas. As vezes é difícil observar o gel completo, não existem essas diferenças que podem ser notadas. Mas qualquer que seja o gel nada se assemelha ao desenho obtido neste sabão, mas o gel é fundamental para ter este efeito, este defeito.

Vamos entender o que é o gel. Quando as condições de emulsificação (traço) está completa, a reação de saponificação começa a ser continua, e gera calor pois a reação química de saponificação é exotérmica. Este calor é dissipado nas bordas e na superfíce da massa do sabão, mas é no meio onde as condições são perfeitas para acumular calor – dissipa menos calor, e neste ponto o aumento da temperatura é substancial. As moléculas líquido cristalinas adquirem mobilidade e há a formação de um gradiente de temperatura do meio para os extremos que você pode ver através da mudança de cor e em alguns casos, o local fica translúcido e também da viscosidade, que diminui. Muitas vezes este gradiente formado vai perdendo o calor e a reação também diminui, não fornecendo mais calor suficiente para manter o gradiente e assim o gel cessa, formando um gel parcial. Quando a reação é longa (maior massa de sabão), e a perda de calor é inibida, o gel se propaga e tem-se o gel total.

Quando senti que a mistura de óleos essenciais estava acelerando o traço, parei de homogenizar e esse tempo de mistura não foi suficiente para mistura bem, incorporar, os óleos na emulsão. Quando da formação de gel, a propagação do gradiente de temperatura, encontra pela frente não um meio homogêneo e sim locais com concentraçoes diferentes de massa de sabão e mistura de óleo esenciais. Esta descontinuidade do meio fez com que o gel deixasse rastro na forma dos desenhos que deu o efeito parecido a uma decoração planejada. Arrisco dizer que neste gradiente do gel houve até um transporte de massa, um deslocamento físico de massa, de massa de óleos essenciais, que enfatizou os desenhos. A cor também ficou alterada, uma cor bege e tem a mesma quantidade de dióxido de titânio  do sabão dominó, que ficou bem branco.

Já testei este sabão prematuramente e nada notei de anormal que me faz supor que a performance não mudou ou ficou comprometida.
Este sabão tem uma formulaçao básica de óleo de palma/babaçú/oliva/mamona – 35/30/30/5, SF de 5%, concentração da soda de 30% e dióxido de titânio (1% s/o)

Pois aí está, um bonito efeito provocado por um bonito defeito! Um efeito que quem sabe nunca poderá ser reproduzido exatamente, foi um momento único dos mistérios da química da saboaria.

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Tem uma matéria sobre gel, que pode ser visto aqui: http://www.japudo.com.br/saboaria/quimica/.

 

 

Sobreengorduramento no traço

Uma prática que algumas saboeiras(os) fazem é adicionar óleo da sobregordura no trace pensando, equivocadamente, que esse óleo é o que vai permacer insaponificado no sabão, isto é, sem reagir com a soda. Este é um dos mitos que povoam o mundo da saboaria artesanal, está tão enraizado que até em livros vc encontra esta prática.

Nada como uma teoria e uma experimentação científica para derrubar mitos.
Foi o que fez Kevin Dunn no seu trabalho: Superfatting and the Lye Discount. Este professor de química é o único químico que tem se dedicado a fazer uma abordagem científica de modo sistemático e tem com isso, contribuido de forma objetiva para explicar os fenômenos da saboaria artesanal.

Fiz uma tradução para o português deste artigo do prof. Kevin Dunn:

Sobreengorduramento e desconto de lixivia.pdf

O artigo original é este:

Superfatting and the lye discount.pdf

 

A importância da concentração de soda

Quando se quer calcular a quantidade de álcali (soda ou potassa) necessária para saponificar uma determinada quantidade de óleo ou mistura de óleos, o cálculo é objetivo e direto. É um cálculo fundamentado na relação estequiométrica da reação de saponificação, uma reação química. Pode ser feito manualmente, necessitando conhecer o índice de saponificação (IS) de cada óleo ou com o uso das várias calculadoras que existem on-line.

Tendo a quantidade de álcali – vou me referir à soda para facilitar, surge a pergunta: quanto de água devo utilizar para fazer a solução para diluir a soda?

Muitas pessoas nem fazem esta pergunta porque utilizam as calculadoras e as duas principais, já fornecem um valor default.

No Soapcalc é 38% de água como percentagem dos óleos e o da Mendrulandia fornece 28% de concentração de soda.

As pessoas pegam esses valores e saem a fazer o sabão. Acontece que na maioria das vezes estes valores não são os ideais para fazer o sabão. O Soapcalc ainda faz uma ressalva que o seu valor padrão é para quem está iniciando e depois, adquirindo experiência, muda para outros patamares de maior concentração de soda. O da Mendrulandia faz um explicação envolvendo os tipos de óleos e a concentração a usar. O que é ruim é que em ambas as calculadoras estas explicações ficam perdidas no meio das instruções que a maioria não lêem.

O fato é que a quantidade de água é muito importante para a performance do sabão nas propriedades de dureza inicial e tempo de secagem inicial. Inicial porque curva de dureza e secagem ao longo do tempo, ao final se aproximam de um ponto em comum. Se deixarmos um sabão comum por, digamos, 6 semanas, independentemente da quantidade de água que foi usada para diluir a soda, todos terão uma dureza similar e estarão secos igualmente. Agora, se tomarmos a dureza e a quantidade de água presente no sabão na primeira semana, se notará uma diferença grande, significativa. E aqui é muito importante a concentração da solução de soda.

Existem três modos de se expressar a quantidade de soda e água quando se vai fazer um sabão artesanal:

1 – Água como percentagem dos óleos

2 – Razão água : soda

3 – Concentração percentual de soda

As duas primeiras na verdade são modos não científicos de se expressar a concentração de uma solução soluto/solvente. É como expressar medidas de massa/volume como colher de sopa, colher de chá, copos, que tem razões históricas por trás, quando os recursos hoje disponíveis eram raros e caros. Há 20 anos atrás, quem poderia comprar uma balança digital?

O mais correto é expressar como concentração percentual de soda. Explicita a quantidade de soda e água presente em 100g de solução.

Fiz uma tabela para mostrar que a concentração de soda pode ser otimizada de acordo com algumas característica do sabão que se quer fazer, sua composição de óleos, o conhecimento de quem vai fazer, do modo que se quer fazer o sabão e também da interferência de alguns óleos essenciais e aditivos.

Os valores abaixo de 25% e acima de 40% estão assinalados em vermelho porque estão em regiões não recomendada, podendo haver separação de líquidos abaixo de 25% e reação muito rápida acima de 40%.

Os principais óleos saturados também conhecidos como óleos duros (hard oils) são os que contém predominantemente, ácidos graxos saturados na sua composição:
óleo de côco, palmiste, babaçú, palma, manteiga de karité, manteiga de cacau, e o esteárico (ácido graxo)

Os principais óleos insaturados também conhecidos como óleos moles (soft oils) são os que contém predominantemente, ácidos graxos insaturados na sua composição:
óleo de oliva, girassol, canola, soja, amêndoas doce, abacate, semente de uvas, arroz e mamona.

Só vou citar os dois extremos da relação saturados/insaturados. No máximo de 100/zero da relação sat/insat está o sabão de côco 100%., cujo único óleo é o que contém o ácido graxo saturado laurico que pode ser o côco, palmiste e babaçú. O traço deste sabão é muito rápido e a saponificação é exotermica, isto é, gera muito calor. Aqui é preciso trabalhar com uma concentração baixa de soda (mais água) do que o normal, algo abaixo de 30%, o que favorece um maior controle do traço e também pode evitar rachaduras do sabão no molde.

O outro extremo  é o venerado sabão 100% azeite de oliva, cujo único componente é o óleo de oliva, que contém predominantemente o ácido graxo oleico, um monoinsaturado. Muitos fazem este sabão usando o valor default de 28% de concentração de soda na calculadora da Mendrulandia ou 38% de água sobre  % de óleos na calculadora do Soapcalc, que corresponde a 25% de concentração de soda.  Este valores de concentração de soda podem ser enormemente otimizados usando até 40% de conc. de soda.

 

 

Óleos vegetais para sabão – refinados ou não refinados … mito!

Os óleos vegetais mais comuns que são usados para fazer sabão e sabonetes artesanais são os mesmos que são usados na sua cozinha ou nas cozinhas das industrias de alimentos. São usados no preparo dos alimentos e na fritura.
O soja, canola, girassol e oliva são os mais usados nos lares, o côco na cozinha regional e o palma e palmiste na confeitaria, em doces e na fritura industrial.

Todos esses óleos são comestíveis e de alto consumo, os usados na cozinha doméstica, são encontrados nos supermercados e mercadinhos. Por razões mercadológicas devem obedecer rígidos padrões de apresentação do produto. São padronizados para serem comestíveis e completamente atóxicos e apresentados como líquidos claros e transparentes, isento de particulados, sem odor e com elevado prazo de validade.

Para se atingir essa padronização, os óleos e gorduras de origem vegetal necessitam de um processamento específico. A esse processamento dá se o nome genérico de refino.

Os óleos vegetais são extraidos de uma variedade de sementes, frutos e nozes. A preparação da matéria prima se inicia com a lavagem e limpeza, seguido pelo descasque, trituração e condicionamento.
A extração geralmente é feita por meio mecânico, sendo para frutos a destilação e para sementes e nozes, a presagem com prensa mecânica. ou pelo uso de solventes como o hexano que depois é destilado para separar do óleo e é reaproveitado.

Após a extração, para eliminar os ácidos graxos livres (FFA) que são responsáveis pela rápida deteriorização do óleo e os fosfolipídeos (goma) que deixa o óleo pegajoso, é necessário o processo propriamente dito de refino. Existem dois tipos de refino, o refino físico onde se usa a destilação (p ex. óleo de palma) e o refino químico (maioria dos óleos) onde é usado um álcali, normalmente hidróxido de sódio, para neutralizar o ácido graxo livre.

O método tradicional de refino é o químico onde o álcali diluido saponifica os ácidos graxos livres e é eliminado como sabão, na água. Além do FFA também é eliminado os fosfolipídeos, metais, produtos oxidados, etc.

No método físico é necessário uma etapa de degomagem com ácidos, fosfórico ou cítrico (p ex. palma) para eliminar os fosfolipídeos. Abaixo está um esquema bem simplificado do processo de extração com solvente e refino químico.

O óleo refinado, quando aplicável, passa por um processo de branqueamento com material de absorção (argila ou carvão ativo) e pelo processo de desodorização com fluxo de vapor. No processo final tem se o chamado óleo RDB (refinado, branqueado e desodorizado).

Todo o processo de refino dos óleos não altera a sua composição de triglicerídeos, isto é, a composição dos ácidos graxos. Deste modo as propriedades dos óleos continua a mesma e o sabão feito do óleo refinado é o mesmo, quando aplicável, p ex. oliva, ao óleo não refinado. O refino retira as impuresas contaminantes dos óleos como os FFA e os fosfolipídeos e com alguns óleos vegetais não refinados sequer é possível fazer um sabão, caso do canola e do soja e do palma.

É um dos mitos da saboaria artesanal, isso de ter problemas com o sabão feito de óleo refinado, não existe nenhuma restrição de quantidade e tipo, que afetam as propriedades do sabão. Outra lenda urbana é, no óleo cuja extração foi empregado solvente, este solvente estará presente no sabão! Outra, no refino químico se usa produtos químicos (NaOH) e essa soda estará no óleo e daí vai estragar o sabão! O absurdo é que depois é usado a soda para fazer o sabão!

Abaixo uma relação com os principais óleos e manteigas utilizados na saboaria artesanal e o tipo de processamento para a sua purificação. A numeração do processo se refere ao diagrama anterior.

Como se pode ver, em alguns óleos existe a opção do virgem e extra virgem que significa que o óleo são sofre nenhum refino, notadamente é o oliva,  e outra opção são os orgânicos, que significa que no refino não é usado produtos químicos, caso do palma orgânico. Obviamente estes tipos especiais são bem mais caros e de difícil disponibilidade.
Enfatizo novamente, não existe razão para escolher óleos virgem, extra virgem e orgânicos para fazer o sabão. Não existe diferênças entre sabão feitos com estes tipos de óleos e os comuns, refinados.

 

 

Entendendo o traço

O que é o traço?

Muita gente tem dúvidas o que é o traço – trace em inglês, aquele momento em que ao misturar a solução de soda aos óleos com agitação, a mistura começa a adquirir uma consistência devido ao aumento da viscosidade e chega a um ponto ideal em que é preciso parar a agitação e verter para os moldes.
O nome traço vem da observação em que a viscosidade é tal que ao colocar e retirar uma espátula na massa, o escorrido deixa um “traço”, uma marca visível na superfície da massa de sabão.

O traço pode ser leve, médio e pesado e a escolha depende da formulação e o que se deseja trabalhar com o sabão. Por exemplo, se for fazer o swirl – técnica de misturar cores formando padrões no sabão, o traço tem que ser leve para possibilitar tempo para fazer o swirl. No caso de fazer sabão em camadas, quer seja de cores diferentes ou mesmo composições diferentes, é melhor trabalhar com traço de médio a pesado. Se a formulação tiver componentes que aceleram o traço, como a manteiga de karité (alto conteúdo de acido esteárico) ou alguns óleos essenciais, é preferivel parar a agitação no traço leve

O tempo necessário para se obter o traço é função dos componentes da formulação, da temperatura do processo, da concentração da soda e do trabalho mecânico aplicado na agitação – com um mixer de cozinha é questão de poucos minutos, se for manual, com um batedor aramado, um pouco mais demorado.

Se a formulação contiver óleos com ácidos graxos saturados, como a manteiga de karité e a manteiga de cacau, o trace é mais rápido. Os que tiverem monoinsaturados ou poliinsaturados, como o óleo de oliva e o de girassol, o tempo é maior. Temperatura maior, reação mais rápida e traço mais rápido e igualmente para a concentração da soda.

Qual é o fenômeno físico-químico que acontece no traço?

Todos já devem ter observado que ao misturar óleo com a água ou vice-versa, no repouso a água e o óleo se separam, formando camadas distintas, o óleo por cima (menor peso específico) e  água por baixo.

O que é preciso para que o óleo e a água se misturem estávelmente?

O modo mais simples é usar produtos chamados surfactantes, tensoativos ou mesmo emulsificantes. São moléculas que possuem um caracter anfifílico, isto é, uma estrutura parte polar e hidrofílica e outra apolar e hidrofóbica.
O sabão é uma surfactante do tipo aniônico, ioniza-se em solução aquosa liberando ânions.

 

Acima uma representação esteroquímica de uma molécula de sabão, com a cabeça hidrofílica do sal de sódio ou potássio e uma cauda hidrofóbica ou lipofílica do ácido graxo do óleo. A cabeça hidrofóbica se liga à água e a cauda à parte do hidrocarboneto do ácido graxo do óleo. Essa afinidade cria a emulsão compatibilizando numa estrutura estável o óleo e a água.

 Então quando se mistura a solução de soda ao óleo, numa situação inicial hipotética para explicar melhor o fenômeno físico-químico onde se supõe que se forme uma interface água-óleo, nesta interface haverá o início da formação de sabão pela reação de saponificação. Se mantida esta situação de repouso, a reação será interrompida pela barreira física e falta de contato entre a solução de soda e o óleo.

Se aplicarmos uma agitação mecânica a este início de saponificação, haverá uma quebra na barreira física e e o contato entre a solução de soda e o óleo será intensificado pelo aumento da área superficial de contato – quebra em micro-partículas. Terá inicio a emulsão e então o nosso conhecido fenômeno do traço

 

Essa seria a representação da emulsão formada entre a água e o óleo por meio da ação surfactante do sabão que começa a se formar.

A emulsão formada pelo surfactante inicial, o sabão e pela ajuda da ação mecânica do mexedor, expõe o contato íntimo da soda com o óleo que é refletida no aumento da viscosidade, da consistência da massa, pela reação de saponificação. Ao contrário do que muito se lê, a saponificação no traço não passa de 10%, isto é, no traço ainda a reação de saponificação é bem inicial, tem muita soda livre, que vai ser processada no molde e nos proximos três ou pouco mais dias do início da secagem.